Messias Modernos






O missionário que trabalha numa agência interdenominacional não traz o devido retorno à igreja ou igrejas que o enviaram. Algumas vezes, se ele está muito distante ou se comunica pouco, o relacionamento se descolore com o tempo e ele é mal compreendido. Torna-se quase uma culpa que alguns carregam, ou um peso financeiro, facilmente substituível pela necessidade de um projetor novo, mais cadeiras ou por um obreiro assalariado para a congregação.

Conheço famílias que foram abandonadas no campo sem aviso prévio. De repente a mesada parou de chegar. Descobriram, depois, que uma decisão da hierarquia da denominação mudou as regras do jogo e decidiu cortá-los da folha de ofertas. Por vergonha ou por falta de interesse, ninguém se deu ao trabalho de comunicar aos missionários. Alguns voltaram, outros ficaram porque a fonte é sempre o Senhor, e não faz parte de seu caráter desamparar ninguém.

A igreja local empenhada cobra resultados espirituais “concretos”, números de convertidos, de batismos, de células de estudo. Há missionários que contam até as pedras do caminho para prestar contas. Outros gastam boa parte de seu tempo bolando maneiras de “comunicar” melhor, pintando de cores vivas demais o trabalho, traduzindo seu dia-a-dia em espiritualês (este é um dom que eu gostaria de ter). Outros, ainda, tentam educar os mantenedores falando a verdade: “Hoje passei o dia cozinhando e lavando panelas para que os índios de dez tribos diferentes que aqui estão possam ter aulas sobre cidadania”. Uma frase assim não rende dividendos. Nem “cozinhar”, nem “lavar panelas” nem “cidadania” é espiritualês.

Uma certa dramaticidade parece necessária. Muitos missionários escrevem cartas que são rosários de lágrimas — descrições infindáveis dos horrores do campo, das doenças, da impiedade do povo. A postura messiânica é essencial: “Se não fosse o meu trabalho ou de minha família, o que seria destes pobres selvagens, destas garotas prostitutas, destes perversos muçulmanos?”. A história do mês tem que ser a mais emocionante possível, extraída de um cotidiano tedioso. Bolsos também são abertos com lágrimas. É o evangelho jogando no mercado de capitais da pobreza.

Infelizmente nem a missão nem a igreja (generalizando grosseiramente) têm consciência da importância do evangelho no contexto geopolítico atual. Se somos chamados ao amor e não ao proselitismo, nos tornamos produto único no mercado. Não temos time a defender a não ser a pessoa de Jesus, a compaixão dele, a cura dos ódios sociorreligiosos-raciais que só ele pode providenciar. Soube por uma pessoa que uma tradução do Evangelho de Mateus feita dois séculos antes de Maomé foi encontrada em uma língua popular do Oriente. Muçulmanos ultra-radicais, sabendo disto, pediram: “Por favor, nos ajudem a recuperar o Jesus que o Ocidente nos tirou; queremos conhecê-lo”.

O Jesus do mercado carrega marcas na camisa como jogadores de futebol; o verdadeiro fala com todas as línguas, culturas e religiões. A missão que tem consciência geopolítica sabe de sua função de linha de segurança que mantém num fino equilíbrio situações tão perigosas quanto uma granada sem pino. A igreja que tem esta consciência não consegue cobrar placas, ou prosélitos. Ela sabe que enviou uma ovelha ao meio de lobos, para “apenas” ensinar futebol, dar aulas, acalentar crianças, tratar malárias e HIV, andar de burca, atrás da cortina negra, para, quem sabe, com auto-sacrifício, trabalho e muita sabedoria, exercer o doce-azedo ministério da reconciliação.


Bráulia Ribeiro, missionária em Porto Velho, RO, é autora de Chamado Radical (Ed. Ultimato).Serve junto a Jovens com uma Missão (JOCUM) - Texto Publicado na revista Ultimato


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