Sobre os muitos “nãos” e poucos “sins” do nosso evangelho






Escuto Damien Rice dizer para a sua namorada, ou talvez para Deus, com sua voz rouca: “I want to hear what you have to say about me...”(Quero ouvir o que tens a dizer sobre mim...). Mas, pelo desespero de sua voz (como é o caso da maioria dos cidadãos comuns neste mundo pós-moderno), ele acha que sabe. Sente-se julgado, acuado num canto escuro, e escuta a voz lhe cobrar uma moral que não se acha capaz de viver, um amor que não se sente inspirado a dar. Como uma namorada insegura, Deus cobra, cobra e cobra.

Toda pracinha tem uma igreja que observa os meninos brincar, encara a prefeitura ou o palácio do governo e se enfeita de luzes em noites de quermesse. Mesmo quando participativa, a igreja da praça isola Deus dentro de si mesma. Deus mora ali solitário e recebe visitas em horas marcadas. Infelizmente esta é a mensagem do templo, seja ele de um Barroco imponente, seja uma portinha de garagem num bairro pobre.

Toda festa tem alguém que não bebe, não fuma, não dança. Senta-se num canto da sala, freqüentemente a dizer para si mesmo que não quer ser como este que se insinua e é rejeitado, ou como aquela que se oferece a todos sem vergonha... Os outros olham o infeliz sentado: “Certamente é religioso”. A primeira coisa que se aprende no evangelho é dizer não. “Nãos” legítimos, necessários; não a nossos hábitos destrutivos do pecado, bebida, sexo ilícito; não às más escolhas que nos faziam crer que éramos intrinsecamente maus; não às distorções de personalidade, arrancadas a fórceps da nossa história.

Mas levamos muito além estes “nãos”. Dizemos não à nossa identidade cultural, à família, aos amigos, àqueles que costumavam nos amar. Vemos como algo positivo este não social àquilo que chamamos de velha vida, e a tudo e todos que se relacionam com ela. Ensinamos uma religião de ostracismo social como um produto da santidade da nova vida.

Toda a vida passamos a combinar Deus com “não-podes” e com posturas supostamente sérias que tentam negar a natureza pecadora que nos perseguia em nosso tempo de afastamento dele. Mas Paulo propõe o contrário. Diz que os “nãos” têm apenas aparência de sabedoria, mas não têm real efeito contra a carne (Cl 2.20-23).

Mas, se tirarmos todos os “nãos”, o que vai nos sobrar? Sabemos muito bem quem nós não somos e o que não podemos fazer. Não somos como os católicos, não somos como os “mundanos”, não somos como os outros crentes — alguns liberais demais para os nossos padrões, outros religiosos demais. Nossa identidade se define com base no que não somos e no que não fazemos que nos torna diferentes.

Triste sina esta, a de não ser. Será a única possibilidade de vida e de auto-definição para o cristão? Ou será que podemos saber o que somos com base em “sins”? “Sins” que deveríamos dizer para todos, desde nós mesmos até a sociedade e o próprio Deus? Precisamos urgente de uma reforma conceitual no nosso evangelho. A essência do evangelho não é uma série de regras, definições religiosas, hábitos e atitudes. A essência do evangelho é o amor. O amor é graça, concessões, tolerância, o oposto da religião de regras e preconceitos que inventamos para nós. Que Deus, em seu amor, diga sim para o nosso arrependimento e tenha misericórdia de nós.

Bráulia Ribeiro

Braulia Ribeiro é missionária em Porto Velho, RO, e presidente da JOCUM — Jovens com Uma Missão.

Artigo Publicado na Revista Ultimato, em Jan-Fev de 2006.

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