Mentoria - A crise do movimento evangélico
Prezado Diego,
Paz! Recebi sua carta. Fiquei feliz em saber que a minha mentoria tem ajudado. Reconheço, a distância realmente prejudica. Um verdadeiro discipulado precisaria de encontros pessoais, mas como não podemos nos ver mais a miúdo, vamos tentar por “correspondência”.
Aliás, adianto-lhe que realmente acredito no poder da palavra escrita. Repito o que já afirmei: considero a literatura a arte mais nobre e mais completa; sequer a música, que é sublime e divina, tem o alcance dos livros. Por isso os regime totalitários, as religiões intolerantes, as instituições opressivas, conspiram para destruir romances, novelas, contos, poemas, crônicas, teses - e até monografias escolares. Desde que mudei o foco da oralidade para a escrita, nunca fui tão criticado, tão massacrado pelos “leões de chácara” da religião. A literatura influencia mais do que imaginamos.
Este, entretanto, não é o nosso tema para hoje.
Alegrei-me com a sua decisão de rever os alicerces da prática pastoral. Muitos líderes evangélicos ainda não perceberam a necessidade daquilo que no espaço religioso o Concílio do Vaticano II chamou de “aggiornamento” ou “atualização” e, no político, Gorbachev tratou como “perestroika” ou “estruturação”. Fica cada vez mais óbvio que os antigos modelos teológicos e eclesiológicos do movimento evangélico estão ultrapassados; precisam ser revistos com urgência – uma das máximas da Reforma Protestante no século XVI era: “igreja reformada, sempre reformando”.
Paradoxalmente, pipocam por todos os lados tentativas para salvar os modelos evangélicos que não respondem às demandas do mundo globalizado. Pastores, bispos e até "apóstolos" inconscientemente reagem ao enfraquecimento do que herdaram.
Alguns pedem uma nova Reforma e reivindicam um retorno “aos bons tempos” do luteranismo, calvinismo, wesleyanismo, puritanismo ou pentecostalismo. Eles lêem relatos otimizados da época em que se defendia a fé com ardor, quando muitos eram martirizados por não cederem diante da “heresia católica romana”. E acham que podem "copy" and "paste" o passado, transferindo-o para os dias atuais. Minha reação imediata é lembrar que não houve apenas uma Reforma, mas várias. Lutero, por mais que seja estimado pelos protestantes, nunca foi uma unanimidade. Ele precisou debater com Thomas Müntzer, o líder camponês que pedia uma Reforma Radical e teve que invalidar os avanços dos anabatistas – Müntzer foi executado pelos príncipes que apoiavam Lutero. Aliás, vários posicionamentos luteranos sobre a mulher e a sexualidade são, hoje, totalmente anacrônicos. Lutero repetia o senso comum da sua época que considerava as mulheres menores que os homens; ele acreditava que toda relação sexual, inclusive no casamento, é pecado. Será possível um retorno à Reforma?
O pietismo é outra tentativa de salvar o barco evangélico – que está à deriva. Ouço com bastante freqüência que o “mundo está entrando na igreja e precisamos orar mais”. Diego, nós dois somos oriundos do pentecostalismo clássico e já participamos de vigílias, círculos de oração, maratonas de intercessão. Não pretendo lhe desestimular, mas entendo que a solução para a crise não virá com mais oração; urge avaliar a qualidade das preces. Não adianta multiplicar clamor a Deus, numa sofreguidão religiosa purgativa. Vejo pouco valor nesse tipo de penitência suplicante. Acredito que o problema é que desaprendemos o que significa orar. Temos que refazer um dever de casa: reformular completamente a percepção da oração, do louvor e da adoração.
Nessa cruzada para salvar o movimento evangélico perduram os conservadores que cobram rigor no legalismo. A solução, dizem, chegará com mais “santidade”; entenda-se santidade como controle nos “usos e costumes”. Os legalistas acham que a atual geração se perdeu porque “ouve música do mundo, vai ao cinema, usa bermuda e fura a orelha com piercing”. Eles não toleram a graça porque "promove libertinagem"; admitem que a salvação seja pela graça, mas "os freios da lei devem ser mantidos para os crentes não descamberem no pecado". Esse pessoal representa o fundamentalismo mais tosco do cristianismo – que não passa de um “talebanismo gospel”; desconhecem, infelizmente, a afirmação de Paulo: “Essas regras têm, de fato, aparência de sabedoria, com sua pretensa religiosidade; falsa humildade e severidade com o corpo, mas não têm valor algum para refrear os impulsos da carne” (Cl 2.23).
Os estadunidenses, com seu pragmatismo, respondem à crise com regrinhas; a cultura de lá adora “sete passos para alguma coisa”. E, nós, os tupiniquins aderimos facilmente a essa mentalidade porque, por aqui, somos vidrados por atalhos. Em meu tempo de vida já vi a pastorada correr atrás de todo modismo que “funciona”, principalmente os que chegam da América. Tem gente que acredita piamente que a solução para a crise virá com uma nova programação litúrgica, um novo visual para o templo ou um novo ritmo no louvor. O famosíssimo Rick Warren plantou uma igreja num subúrbio da Califórnia; escreveu vários livros sobre os “princípios universais” que fundamentaram seu sucesso e virou febre nas periferias pobres do Brasil. Será que precisamos multiplicar comunidades iguais à de Saddle Back? Não discuto a plausibilidade. Mas será que desejamos esse tipo de cristianismo? Posso adiantar que não. Seria horroroso copiar o “sucesso” (grandes aspas) dessa comunidade, ela não é o modelo a ser seguido. Outras expressões cristãs, vindas do Sri Lanka, Egito, Venezuela, Bolívia mereceriam também ser avaliadas. Sabe por que não são sequer consideradas? São pobres.
Amigo, a resposta para a tremenda crise do movimento evangélico tem a ver com o enfraquecimento de paradigmas. Sim, a Bíblia continua a mesma. Precisamos, tão somente, perguntar se ela é lida com lentes infalíveis. Os pressupostos da teologia devem mesmo permanecer engessados? Se não, devemos acolher a contribuição de pensadores que não pertencem ao colégio canônico dos protestantes, fazer sínteses a partir de seus pensamentos e responder adequadamente às perguntas que nascem das tragédias e anseios de nossa geração.
Bem, o texto ficou longo.
Preciso ir.
Reflita nestas coisas.
Ricardo Gondim
Soli Deo Gloria.
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